terça-feira, 28 de outubro de 2014

Reino da noite

Chega a noite e eu me perco nas horas
Nela quero vagar como se fosse dia
Me dispo de veste e me visto de luz
Luz de lua, luz de noite
Parece que as horas me são súditas
E as palavras soam como música
Dançam em meus ouvidos
Pulsam em meu coração
E toda pele vira tinta
Seus arrepios e memória viram palavras
Se derramam pela ponta da caneta 
À noite, todo sentimento se escreve

Nesse silêncio eu reino
É meu reino
As palavras transitam no ar
Explodem como bolhas de sabão
Borbulham como larva de vulcão
É noite e é luz
É ausência de voz e terna companhia
Estou comigo

Mas nada é meu
Não sou dono, rei ou rainha
Essa hora não é minha
E, nesse tempo, sou plebeu
Réu confesso
Rendido e condenado
Com a indignação ignorada
E as palavras
E alma
Sou agora olhos cerrados
Mãos largadas
Escravo do tempo
Nada

sábado, 26 de julho de 2014

Meu sobrenome é Gonçalves, mas bem que podia ser Silva

Um garoto com idade próxima a 12 ou 13 anos inaugurou um debate fervoroso numa lanchonete em que eu estava. Após, sem sucesso, tentar roubar o celular de uma moça enquanto a mesma falava e caminhava desatenta na rua. Assombrada e segurando o choro, a moça foi acolhida e amparada pelos consumidores do estabelecimento, no qual começaram a discorrer as soluções para que este episódio não se repetisse na sociedade. Uns chamaram o episódio de problema social e outros de problema de segurança, mas, o que mais me chamou atenção foram as causas do problema: não levou uma boa surra na infância, falta de polícia na rua, ausência de lei que prenda nessa idade e até a falta de pena de morte no país; as duas últimas, segundo os debatedores, dá aos infratores a liberdade para o crime.
Eu não tenho propriedade para falar sobre leis, nem sobre políticas públicas, tampouco sobre educação de crianças. Mas, também nunca fui vítima direta dessa população e talvez possa apresentar um discurso romântico sobre esta realidade. Contudo, tenho o direito a pensar, refletir e me preocupar com a origem, repercussão e a propagação desse tipo de opinião do qual ouvi. E, ainda tomando meu suco, me perguntei: será que não dá para pensar em oferecer outra coisa para esse menino?
Meu sobrenome é Gonçalves, mas bem que podia ser Silva. Meus pais são oriundos de famílias bem pobres. Ele, nascido no interior do Estado, veio com os pais e outros 5 irmãos para o Recife em busca de uma vida melhor. Não se contentou em ser apenas alfabetizado e desafiou a sua realidade, decidindo completar os estudos por ver neles a oportunidade de se destacar e encontrar essa tal vida que é melhor. Ela e seus outros 5 irmãos são do Recife, mas desses altos que, na época, tinha de luxo a escadaria. A despeito de todas as dificuldades (muitas!), filha de pais divorciados e semi-analfabetos, insistiu em frequentar a escola. Juntos, tomaram a decisão mais absurda para as suas condições socioeconômicas, decidiram formar uma família, dessas que incluem filhos e responsabilidade.
Eu nasci e fui criada em bairros pobres; por uma cartada de sorte e graça de Deus, tivemos casa própria quando eu já tinha 09 anos de idade; nossa primeira televisão com controle remoto veio quando eu já tinha uns 11 anos (e de um sorteio que minha mãe participou por ter sido uma das melhores líderes vendedores de tupperware da época); minha primeira bicicleta (nossa! porque essas coisas eram únicas para mim e meu irmão) também por volta dos 11 anos. Não tivemos videogame, viagem para Disney, grandes festas de aniversário, roupas da temporada ou muitos pares de sapatos (que geralmente eram comprados em números maiores para durarem mais).
Recebemos muitas reclamações, algumas palmadas, horas de castigo, muito exemplo e, principalmente, muito amor e afeto. Com isso, aprendemos que o que é dos outros é dos outros, que o que é nosso é nosso e que dividir o que é nosso pode ser tão prazeroso quanto necessário. Aprendemos que os mais velhos merecem respeito, que os menores precisam de cuidado e que a mentira, além de ferir, afasta as pessoas que amamos. Que expressões como “com licença”, “por favor” e “obrigado” não são favores, mas obrigação de pessoas educadas. Por causa deles, fiz meu primeiro vestibular aos 10 anos, entrei numa das melhores escolas públicas do Recife e iniciei o maior disparate que uma criança pobre pode fazer: aprender! Eram duas ousadias concomitantes: uma escola que ensinava e alunos que aprendiam. E eu o fiz com muita leveza, mas não sem cobranças, porque, por causa deles, eu nunca duvidei que pudesse fazê-lo. Para mim era claro que eu poderia, não só poderia como deveria.
Por causa dos meus pais, dos pais dos meus pais e, talvez, devido aos pais deles eu sou um número fora das estatísticas, uma contradição social... Sou fonoaudióloga, com mestrado em Ciências da Linguagem, atualmente cursando especialização em Linguagem e seus distúrbios. O pouco letramento e as muitas privações dos meus avós não foram suficientes para impedir que seus filhos se tornassem cidadãos de bem. Por sua vez, meus pais quiseram se tornar heróis através de seus filhos – contrariando as previsões sociais, revolucionando nossas vidas com a educação de boa qualidade, na medida do possível e extrapolando essas medidas, às vezes – e conseguiram, são grandes heróis. Somos (meu irmão e eu) o reflexo do esforço e da conduta dos nossos pais e de seus desejos que, por conseguinte, é resultado de experiências, crenças e oportunidades que eles tiveram em seus lares.
E o que a minha vida tem a ver com aquele menino de lá? Faz-me pensar o que seria se fosse. O que ele seria se lhe déssemos outras coisas, se tivéssemos oferecido outras coisas a seus pais e aos pais de seus pais? Penso o que ele seria se tivesse aprendido a ler e escrever corretamente? Se os seus pais fossem corretos e não tivessem que concorrer com as drogas e o dinheiro fácil e ilícito? Se esse desejo de consumo não fosse tão agressivo em nossas mentes e corações? Pensando nele (e em tantos outros como ele) e em mim, penso o que eu seria se não tivesse os pais e a escola que tive? Não desprezo os meus méritos pessoais, mas, seguramente, eles são consequência e não causa das pessoas e das oportunidades da minha vida.

quarta-feira, 2 de julho de 2014

Singular

Só esse jeito, esse seu jeito é capaz de redescobrir as cores do mundo, apesar de cinza, apesar da noite – preserve-o. Tanto quanto essa maneira leve e que chega ao fundo, ao fundo dos olhos, sem ao menos vê-los. Então, assim, você me defende de mim, da minha fraqueza de ceder às feiuras do mundo, que me confundem e me arrastam.

Sem nenhum toque você é capaz de me estender a mão e me alcançar... E alcança as minhas verdades, a minha dignidade e me distingue da mediocridade que me cerca. Eu fui compreendida e salva: o normal é que está ao contrário, não eu! Sua compreensão leal e sincera me acolhe, conforta e afaga.

E eis que eu aceito a dor... Com delicadeza você a põe no meu peito, com delicadeza e satisfação. Porque antes de mim, com seu olhar singular, você enxergou que eu sou maior exatamente pela dor que me aflige. Então, como não aceitá-la? É essa dor aureolada de revolta que me torna livre, consciente e oleosa: eu não me misturo ainda que junto. É nela que reside minha grandeza!

Mas, de todo aprendizado que seu modo de suportar a dor me proporciona, o mais fascinante deles é o mistério que, mesmo na solidão, há companhia. Grata por está aqui, além de está ai.

quarta-feira, 23 de abril de 2014

Se quiser saber, olhe


Abro fendas profundas continuadamente e exibo as entranhas sem despir uma veste. E, por mais profundas que elas sejam, não dão conta de mostrar o que nelas há. Nem eu mesmo tenho certeza do que se pode encontrar, tanto que, às vezes, até me assusto: vez ou outra me dou uma novidade! Minha única certeza é minha infinitude, não que seja eterna, mais inacabada, quase poço sem fim.

Porém, se quiser saber, aproxime-se e veja. Não espere que eu desfie sobre mim, não me rendo tão facilmente. Para me ver, me saber, só mais de perto, quase rente a mim. Visto que, essas palavras que me saltam dos lábios são puro exercício de se fazer ver, de mostrar o que basta, estão prontas para me despistar. A quem quiser saber, olhe mais de perto e, sem perguntas, saiba. Minhas palavras não são resistentes quando olhadas por dentro, por essas janelas que apontam a alma, só por elas saem as verdades que me infortunam e contentam. Elas se rendem quando olhadas nos olhos...

Eu me perturbo, me provoco por horas a fio e me dou a impressão que vivo a me testar. Às escondidas, sangro o querer a fim de exercer o dever - ou suportar o devir? Por mim, me desfaço a fim de me mostrar inteira. Sou mesmo é um ensaio da loucura, revestido de equilíbrio e sensatez, que são superfície, parte de mim, não eu. Por baixo da pele, há um funcionamento que tem por ordem a intensidade e não a organização. 

E quem atestará se não me atravessam o olhar? Deram às palavras o poder de por ordem no mundo, mas elas não dão contam dos mundos particulares e suas sutilezas. Não de mim... De modo que, se não me têm os olhos, não me terá as palavras, nem fendas, nem verdades, nem mentiras. Há de se ter superfície: parte de mim, não eu.

sexta-feira, 11 de abril de 2014

Muita coisa, tanta coisa e quase nada

Cansei das coisas que não sei, das sensações que não entendo. Estou cheia das perguntas que não faço e das respostas que não tenho. Estão me incomodando as palavras que se esvaem, os olhos que se desviam e as mãos que não se encontram. É muita coisa, tanta coisa e quase nada.
Vejo janelas abertas para a mesma paisagem e nenhum vento, exceto o que eu insisto em soprar. Não sei se é desejo ou obrigação de fazer o vento entrar, ou os dois... Tenho contado o tempo em moedas, lamentando cada segundo que gasto enquanto assisto o desperdício. Se eu pudesse, penso que enlouqueceria... Estou em devaneios.
Assim, corto a noite no meio sob um caderno com letras só para meus olhos e palavras para outros corações. Se não interrompo o sono, ele não continua. O que me toma não cabe em mim. Se eu não o lanço fora invade meu sono, minha fome, meu sossego: é brotoeja na alma.
Queria ir la fora e dançar na chuva, despida de vergonhas e inquietações. Rodopiar insanamente uma valsa sem par, desacompanhada e livre. E me cansar de outras coisas que não desse vazio desassistido e morno. Isso é ordinário: eu nem fervo nem gelo. É só inquietude. Cansada...

sábado, 22 de março de 2014

Carta à Clarice

Querida Clarice,

Nos últimos meses, tenho refletido sobre a dor causada para que se sinta prazer em se estar vivo. E, realmente, trata-se de uma atividade significativamente cansativa. Cada vez mais, compreendo sobre o quanto é fácil morrer: é cômodo, dispensa coragem e ousadia. Viver é muito mais assustador; como você mesmo já disse: chega a parecer a grandeza da morte. E, haja força para suportá-la!
Eu vi o prazer nascendo assombrosamente, jamais imaginei que pudesse doer, tampouco que necessitasse da partilha do próprio vazio e que, nesta partilha, estaria exatamente o perigo... Foi o dar-se e o encontrar-se, sem medo de se gastar. Assim, compreendi, definitivamente, sobre a comunicação muda, sobre a solidão acompanhada.
Eis que sinto o sabor da água ruim saída da bica enferrujada: água morna e seca! É verdadeiramente um horror, mas é legítimo. É a busca do prazer (que não o forçado!), é o desamparo de estar viva por querer se fazer motivo e tema, de consistir apesar de.
No fundo, o que busco é o tal “estado agudo de felicidade” do qual você me falou. Mas, como o alcanço com toda essa saudade? A presença me é pouco, minha cara... Pois, por já ter aberto as mãos e o coração, o desejo de ser o outro não se contém, tem-me sido urgente.
É... você tinha razão, é um grande susto estar viva... Espero que o bom Deus me revista com a película necessária para me proteger e tolerá-la: tolerar a vida.
Saudações,
Poliane

sábado, 15 de março de 2014

Furtada e grata

Entrei em casa e, ao me lançar no sofá, senti que estava meio febril. Apesar das mãos frias, eu sentia arder por dentro. Como demanda viajar pra dentro de si... Há prazer, dor e outras sensações que cujas palavras não encontrei para descrevê-las. Ah, as palavras... Quase me foram arrancadas, sem eu perceber, elas me eram tomadas, obrigadas a sair. Precisavam ser obrigadas: não dá para se descobrir e ter palavras para isso ao mesmo tempo, seria uma grande façanha! O fato é que fui sutilmente furtada enquanto queria me dar, e ainda me ganhei de presente.
Meu plano era tão menor. Era ser regaço com gratuidade, doar escuta por desejo de desaguar um peito que teve o riso comprometido. Era menor, contudo, não menos audacioso. Queria tanto ajudar a recobrar o ânimo, o sono e o caminho. E não sei, sequer, se os risos foram conquistas minhas ou doação generosa.
Do que eu sei é do encontro comigo e do tanto que eu me desconhecia. Esbocei-me em giz de palavras, delineei uma face que pode ser minha, ou que poderá vir a ser, mas que era eu...  Que susto ao me deparar com aquela imagem. Eu gostei do que vi: outro susto! Além dele, senti medo. Naquele momento eu não entendia o que era aquilo que chamei de ansiedade. Agora entendo as palpitações e o leve tremor das mãos: medo. Era medo de, enquanto me descobria, ser vista e compreendida. Eu que me despisto desses olhares por sob a pele, me vi, mais uma vez, tirar cascas que eu nem sabia que existiam. Eu que ousava dizer saber pouco de mim, me deparei com o constrangimento de desconhecer esse pouco.
Rabisco inacabado, com vários traços por cima de outros traços, não tinha o meu rosto, mas minhas formas. Traçados por vezes malfeitos, com brechas e falhas e beleza. Um esboço incompleto. E esse estado de incompletude é que me anima. Ainda não acabou, sou isso e não sou, estou me fazendo...
Gratidão. Essa é a palavra que dirijo ao Criador, à vida, àquele ladrão. Afinal, não é todo dia que se encontra consigo mesmo e se agrada dessa presença, que se se depara com a solidão acompanhada, bem acompanhada.

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

Folheando


Livro aberto, primeira página, olhou a outra
Nada
Mais uma página e mais outra
Sem compreender coisa alguma, nem achar palavra de sentido
Outra página
Outra e a mesma coisa
Letras e letras, mas era coisa alguma
Sem figuras, sem números, sem qualquer pista
Passou à próxima
Ainda sem sucesso
Ops... Talvez agora...
Na próxima e...
Tarde demais!
Fechou-se o livro

Um punhado de lágrimas, por favor!

Estou catando lágrimas como quem cata moedas em dias de fome. O desejo é que a privação seja saciada com a voracidade que atenta. Quero chorar litros e ver se gasto a dor: consumir o que me consome! Mas nem um pingo, nem uma gota... Não debulha nada do olho, nem lá de dentro, parece mesmo que está tudo no meio do caminho, entalado na garganta, misturado com as palavras que também não saíram.

É como diz essa gente que conhece o infortúnio: agora danou-se! Porque não há o que fazer com esses nós que se amarram e que não descem nem sobem no peito. Por isso é que eu digo, é de danar (ou danar-se!) essa lágrima que não cai e a palavra que não sai. É um perder-se de si, uma falta de encontro com o outro. É desalento, é incômodo, é coisa séria e sem futuro.

Onde já se viu não ter lágrima? Então, afim de consolo, faço meu anúncio: compro, troco, negocio qualquer punhado do produto! Já que meu remédio é o tempo, e este me falta, é apenas para fins de acalento, de busca por alívio e quietude. Um punhado de lágrimas, por favor!

domingo, 26 de janeiro de 2014

Fúria

Difícil entender como tropecei nas próprias pernas, me inebriei com minhas palavras e me findei com as próprias mãos. Com toda sinceridade, eu não me entendo, porém me respeito profundamente. Porque uma mulher que tem fúria merece ser respeitada. De modo especial, quando, apesar da fúria, ela consegue manter intactas todas as coisas ao seu redor; num perfeito estado de normalidade que, aos mais distraídos, parece entoar um silêncio até melódico. E eu tenho fúria!
Esse quê de insanidade que se confunde com valentia para beijos, querelas, travessuras e sofrimento. É um ímpeto que me é intrínseco, que não me deixa ser aos poucos, que me faz querer ser por inteiro. Não sei como dividir afeto em pedaços, beijos em partes, brigas em doses homeopáticas. Faz como pra brincar com uma criança aos poucos? O máximo que eu alcanço é controlar as ações, não as emoções. Apenas me controlo! É preciso respeitar também essas regras que nos garantem a vida em sociedade, asseguram meu direito de ir e vir por ser reconhecida como alguém normal (Freud explica!).
Eu falei que controlo? Creio mais que eu contenho – em todos os sentidos que a palavra aponta. Contenho as lágrimas, o riso frouxo e o do canto da boca, a piada, a solidão, a dúvida, a vontade de dançar na chuva, o desejo, o medo, a ira, a dor, a compaixão. E tudo isso, com muita força. É fúria. Pra sorrir, pra chorar, pra dançar, pra escrever, pra acompanhar, pra dizer que sim ou que não. Se eu estou, preciso ser e, se não puder ser, não há força que me impeça de sentir. E sentir, por sua vez, é uma habilidade que eu desempenho, geralmente, com fúria. Na alegria, por exemplo, eu reluzo – meu sorriso é capaz de ofuscar!
Sendo assim, dá pra imaginar como é quando eu sinto dor, raiva ou tristeza? É duro segurar, entretanto, tudo permanece no lugar e é impressionante como eu sou boa nisso: implodo com maestria. Da boca pra fora, tudo é silêncio. Antes dela, o barulho é intenso e ensurdecedor. Há terremotos por toda parte, no entanto, até aqui, sobrevivi a todos, a todos suportei. Não sem dor, não sem marcas.
Contudo, não aprendi ser vítima, me recolher num canto e esperar ser devorada. Quando acuada, eu me lanço, reajo impetuosamente. Se tropecei nas minhas pernas é porque resolvi seguir em desatenção e assumo a responsabilidade de ter aceitado correr os riscos disso. Só que doeu e dar cabo de si mesmo não é uma tarefa fácil: terremotos. Mas, sou uma mulher que tem fúria, que tolera o tempo do caos porque, cedo ou tarde, hei de pôr o chão nos pés.