segunda-feira, 8 de fevereiro de 2016

Degustação der ser

Você se descobre inteiro depois de se ver em partes, especialmente quando se olha no espelho e se reconhece com todos os remendos que lhe compõe: tecitura de sentimentos em todas as suas nuances. Sou toda minha e toda eu, quando sou eu mesma, ainda que em partes.

Falo sobre mim de modo que possa me sentir concreta: pedaço, aço, embaraço, corpo, osso, sangue, gente, mente, chão, grão. Poetiso minha história que é em prosa e escrita com traços grossos e firmes. Faço força nos contornos e me enrosco para compor os arabescos. Eu me falo, eu me calo, eu que me sei quando me suponho. Não se atreva, não se meta, não me julgue! Não corra o risco de errar e dividirmos o pecado da nossa existência. Já há muitos perdões a se pedir e distribuir: por que gastar a misericórdia divina com nossa pobreza de apontar o que não compreendemos? Eu existo e não apenas quando penso mas, de modo especial, quando sinto; só que me extrapolo e me expando.

E existir é fascinante…

Então, serei eu um dia captada pelo que sou e não pelo que me faço supor ser? E quantos sóis nascerão nesse intervalo de tempo? Mas não importa, não há pressa nem espera. Há repouso em mim, degustação de ser em si.

sexta-feira, 8 de janeiro de 2016

Eu sendo

e como gastar-se
eu conheço
e como perder-se
eu entendo
e como encontrar-se
eu procuro

vagando
andando
querendo
e indo
é gerúndio e infinitivo
é o presente do futuro
a precisão do nada
a vaguidão do desejo

redemoinhos de mim
em mim
sem dó
sem sol
sem som

passos firmes
áridos
mas firmes
sem rota
mas em frente

sexta-feira, 20 de novembro de 2015

Vazio

Estou cheia de um vazio que não é mudo nem inocente. Impede as horas, rasga o tempo. É vazio que escorre e se espalha, denso, molesto: contamina os fazeres, os sentidos, os gestos e as palavras. Nasce antes do sol e não dorme com a noite. Inquieta.

Não é sensação, instante, é estado. É febre, frio, lampejos de taquicardia, inapetência, letargia, boca seca. É espera e urgência! Profundas misturas de falta e excesso.

Tenho por obviedade a incerteza e a necessidade de consistir, existir. De longe dá pra se ver o desejo agudo de voltar a renascer de novo e o medo à espreita.

E eu podia dar uma festa, se quisesse ser outra. Mas sendo eu mesma, recolho pedaços e palavras, lhes dou cuidado, reciprocidade e respeito. Há dor e toda dor exige seu luto.

Valha-me Deus! Valha-me nessa fresta de vida em que os pés estão suspensos do chão, se não por suspiros por gemidos.

domingo, 8 de novembro de 2015

Lembrete

Rasgue de vez esse sorriso que eclode aos assobios das tuas palavras
Liberte essa parte de mim que quer ser inteira
Não me distraia
Não se distraia
Usemos o tempo que quer se dar
Ele corre
E é curto
Olhe os sinais
Não são tempos de paz
Demos-lhe vida
E cor
E risos
Não se demore
Não me canse
Estenda a sua mão
Coloramos solstícios
Nas cores do mundo que vejo
Pelos teus olhos
Com minhas mãos
Com suas mãos
E palavras
E ações
Não me distraia
Não se distraia

terça-feira, 28 de outubro de 2014

Reino da noite

Chega a noite e eu me perco nas horas
Nela quero vagar como se fosse dia
Me dispo de veste e me visto de luz
Luz de lua, luz de noite
Parece que as horas me são súditas
E as palavras soam como música
Dançam em meus ouvidos
Pulsam em meu coração
E toda pele vira tinta
Seus arrepios e memória viram palavras
Se derramam pela ponta da caneta 
À noite, todo sentimento se escreve

Nesse silêncio eu reino
É meu reino
As palavras transitam no ar
Explodem como bolhas de sabão
Borbulham como larva de vulcão
É noite e é luz
É ausência de voz e terna companhia
Estou comigo

Mas nada é meu
Não sou dono, rei ou rainha
Essa hora não é minha
E, nesse tempo, sou plebeu
Réu confesso
Rendido e condenado
Com a indignação ignorada
E as palavras
E alma
Sou agora olhos cerrados
Mãos largadas
Escravo do tempo
Nada

sábado, 26 de julho de 2014

Meu sobrenome é Gonçalves, mas bem que podia ser Silva

Um garoto com idade próxima a 12 ou 13 anos inaugurou um debate fervoroso numa lanchonete em que eu estava. Após, sem sucesso, tentar roubar o celular de uma moça enquanto a mesma falava e caminhava desatenta na rua. Assombrada e segurando o choro, a moça foi acolhida e amparada pelos consumidores do estabelecimento, no qual começaram a discorrer as soluções para que este episódio não se repetisse na sociedade. Uns chamaram o episódio de problema social e outros de problema de segurança, mas, o que mais me chamou atenção foram as causas do problema: não levou uma boa surra na infância, falta de polícia na rua, ausência de lei que prenda nessa idade e até a falta de pena de morte no país; as duas últimas, segundo os debatedores, dá aos infratores a liberdade para o crime.
Eu não tenho propriedade para falar sobre leis, nem sobre políticas públicas, tampouco sobre educação de crianças. Mas, também nunca fui vítima direta dessa população e talvez possa apresentar um discurso romântico sobre esta realidade. Contudo, tenho o direito a pensar, refletir e me preocupar com a origem, repercussão e a propagação desse tipo de opinião do qual ouvi. E, ainda tomando meu suco, me perguntei: será que não dá para pensar em oferecer outra coisa para esse menino?
Meu sobrenome é Gonçalves, mas bem que podia ser Silva. Meus pais são oriundos de famílias bem pobres. Ele, nascido no interior do Estado, veio com os pais e outros 5 irmãos para o Recife em busca de uma vida melhor. Não se contentou em ser apenas alfabetizado e desafiou a sua realidade, decidindo completar os estudos por ver neles a oportunidade de se destacar e encontrar essa tal vida que é melhor. Ela e seus outros 5 irmãos são do Recife, mas desses altos que, na época, tinha de luxo a escadaria. A despeito de todas as dificuldades (muitas!), filha de pais divorciados e semi-analfabetos, insistiu em frequentar a escola. Juntos, tomaram a decisão mais absurda para as suas condições socioeconômicas, decidiram formar uma família, dessas que incluem filhos e responsabilidade.
Eu nasci e fui criada em bairros pobres; por uma cartada de sorte e graça de Deus, tivemos casa própria quando eu já tinha 09 anos de idade; nossa primeira televisão com controle remoto veio quando eu já tinha uns 11 anos (e de um sorteio que minha mãe participou por ter sido uma das melhores líderes vendedores de tupperware da época); minha primeira bicicleta (nossa! porque essas coisas eram únicas para mim e meu irmão) também por volta dos 11 anos. Não tivemos videogame, viagem para Disney, grandes festas de aniversário, roupas da temporada ou muitos pares de sapatos (que geralmente eram comprados em números maiores para durarem mais).
Recebemos muitas reclamações, algumas palmadas, horas de castigo, muito exemplo e, principalmente, muito amor e afeto. Com isso, aprendemos que o que é dos outros é dos outros, que o que é nosso é nosso e que dividir o que é nosso pode ser tão prazeroso quanto necessário. Aprendemos que os mais velhos merecem respeito, que os menores precisam de cuidado e que a mentira, além de ferir, afasta as pessoas que amamos. Que expressões como “com licença”, “por favor” e “obrigado” não são favores, mas obrigação de pessoas educadas. Por causa deles, fiz meu primeiro vestibular aos 10 anos, entrei numa das melhores escolas públicas do Recife e iniciei o maior disparate que uma criança pobre pode fazer: aprender! Eram duas ousadias concomitantes: uma escola que ensinava e alunos que aprendiam. E eu o fiz com muita leveza, mas não sem cobranças, porque, por causa deles, eu nunca duvidei que pudesse fazê-lo. Para mim era claro que eu poderia, não só poderia como deveria.
Por causa dos meus pais, dos pais dos meus pais e, talvez, devido aos pais deles eu sou um número fora das estatísticas, uma contradição social... Sou fonoaudióloga, com mestrado em Ciências da Linguagem, atualmente cursando especialização em Linguagem e seus distúrbios. O pouco letramento e as muitas privações dos meus avós não foram suficientes para impedir que seus filhos se tornassem cidadãos de bem. Por sua vez, meus pais quiseram se tornar heróis através de seus filhos – contrariando as previsões sociais, revolucionando nossas vidas com a educação de boa qualidade, na medida do possível e extrapolando essas medidas, às vezes – e conseguiram, são grandes heróis. Somos (meu irmão e eu) o reflexo do esforço e da conduta dos nossos pais e de seus desejos que, por conseguinte, é resultado de experiências, crenças e oportunidades que eles tiveram em seus lares.
E o que a minha vida tem a ver com aquele menino de lá? Faz-me pensar o que seria se fosse. O que ele seria se lhe déssemos outras coisas, se tivéssemos oferecido outras coisas a seus pais e aos pais de seus pais? Penso o que ele seria se tivesse aprendido a ler e escrever corretamente? Se os seus pais fossem corretos e não tivessem que concorrer com as drogas e o dinheiro fácil e ilícito? Se esse desejo de consumo não fosse tão agressivo em nossas mentes e corações? Pensando nele (e em tantos outros como ele) e em mim, penso o que eu seria se não tivesse os pais e a escola que tive? Não desprezo os meus méritos pessoais, mas, seguramente, eles são consequência e não causa das pessoas e das oportunidades da minha vida.

quarta-feira, 2 de julho de 2014

Singular

Só esse jeito, esse seu jeito é capaz de redescobrir as cores do mundo, apesar de cinza, apesar da noite – preserve-o. Tanto quanto essa maneira leve e que chega ao fundo, ao fundo dos olhos, sem ao menos vê-los. Então, assim, você me defende de mim, da minha fraqueza de ceder às feiuras do mundo, que me confundem e me arrastam.

Sem nenhum toque você é capaz de me estender a mão e me alcançar... E alcança as minhas verdades, a minha dignidade e me distingue da mediocridade que me cerca. Eu fui compreendida e salva: o normal é que está ao contrário, não eu! Sua compreensão leal e sincera me acolhe, conforta e afaga.

E eis que eu aceito a dor... Com delicadeza você a põe no meu peito, com delicadeza e satisfação. Porque antes de mim, com seu olhar singular, você enxergou que eu sou maior exatamente pela dor que me aflige. Então, como não aceitá-la? É essa dor aureolada de revolta que me torna livre, consciente e oleosa: eu não me misturo ainda que junto. É nela que reside minha grandeza!

Mas, de todo aprendizado que seu modo de suportar a dor me proporciona, o mais fascinante deles é o mistério que, mesmo na solidão, há companhia. Grata por está aqui, além de está ai.