sábado, 15 de março de 2014

Furtada e grata

Entrei em casa e, ao me lançar no sofá, senti que estava meio febril. Apesar das mãos frias, eu sentia arder por dentro. Como demanda viajar pra dentro de si... Há prazer, dor e outras sensações que cujas palavras não encontrei para descrevê-las. Ah, as palavras... Quase me foram arrancadas, sem eu perceber, elas me eram tomadas, obrigadas a sair. Precisavam ser obrigadas: não dá para se descobrir e ter palavras para isso ao mesmo tempo, seria uma grande façanha! O fato é que fui sutilmente furtada enquanto queria me dar, e ainda me ganhei de presente.
Meu plano era tão menor. Era ser regaço com gratuidade, doar escuta por desejo de desaguar um peito que teve o riso comprometido. Era menor, contudo, não menos audacioso. Queria tanto ajudar a recobrar o ânimo, o sono e o caminho. E não sei, sequer, se os risos foram conquistas minhas ou doação generosa.
Do que eu sei é do encontro comigo e do tanto que eu me desconhecia. Esbocei-me em giz de palavras, delineei uma face que pode ser minha, ou que poderá vir a ser, mas que era eu...  Que susto ao me deparar com aquela imagem. Eu gostei do que vi: outro susto! Além dele, senti medo. Naquele momento eu não entendia o que era aquilo que chamei de ansiedade. Agora entendo as palpitações e o leve tremor das mãos: medo. Era medo de, enquanto me descobria, ser vista e compreendida. Eu que me despisto desses olhares por sob a pele, me vi, mais uma vez, tirar cascas que eu nem sabia que existiam. Eu que ousava dizer saber pouco de mim, me deparei com o constrangimento de desconhecer esse pouco.
Rabisco inacabado, com vários traços por cima de outros traços, não tinha o meu rosto, mas minhas formas. Traçados por vezes malfeitos, com brechas e falhas e beleza. Um esboço incompleto. E esse estado de incompletude é que me anima. Ainda não acabou, sou isso e não sou, estou me fazendo...
Gratidão. Essa é a palavra que dirijo ao Criador, à vida, àquele ladrão. Afinal, não é todo dia que se encontra consigo mesmo e se agrada dessa presença, que se se depara com a solidão acompanhada, bem acompanhada.