sábado, 26 de julho de 2014

Meu sobrenome é Gonçalves, mas bem que podia ser Silva

Um garoto com idade próxima a 12 ou 13 anos inaugurou um debate fervoroso numa lanchonete em que eu estava. Após, sem sucesso, tentar roubar o celular de uma moça enquanto a mesma falava e caminhava desatenta na rua. Assombrada e segurando o choro, a moça foi acolhida e amparada pelos consumidores do estabelecimento, no qual começaram a discorrer as soluções para que este episódio não se repetisse na sociedade. Uns chamaram o episódio de problema social e outros de problema de segurança, mas, o que mais me chamou atenção foram as causas do problema: não levou uma boa surra na infância, falta de polícia na rua, ausência de lei que prenda nessa idade e até a falta de pena de morte no país; as duas últimas, segundo os debatedores, dá aos infratores a liberdade para o crime.
Eu não tenho propriedade para falar sobre leis, nem sobre políticas públicas, tampouco sobre educação de crianças. Mas, também nunca fui vítima direta dessa população e talvez possa apresentar um discurso romântico sobre esta realidade. Contudo, tenho o direito a pensar, refletir e me preocupar com a origem, repercussão e a propagação desse tipo de opinião do qual ouvi. E, ainda tomando meu suco, me perguntei: será que não dá para pensar em oferecer outra coisa para esse menino?
Meu sobrenome é Gonçalves, mas bem que podia ser Silva. Meus pais são oriundos de famílias bem pobres. Ele, nascido no interior do Estado, veio com os pais e outros 5 irmãos para o Recife em busca de uma vida melhor. Não se contentou em ser apenas alfabetizado e desafiou a sua realidade, decidindo completar os estudos por ver neles a oportunidade de se destacar e encontrar essa tal vida que é melhor. Ela e seus outros 5 irmãos são do Recife, mas desses altos que, na época, tinha de luxo a escadaria. A despeito de todas as dificuldades (muitas!), filha de pais divorciados e semi-analfabetos, insistiu em frequentar a escola. Juntos, tomaram a decisão mais absurda para as suas condições socioeconômicas, decidiram formar uma família, dessas que incluem filhos e responsabilidade.
Eu nasci e fui criada em bairros pobres; por uma cartada de sorte e graça de Deus, tivemos casa própria quando eu já tinha 09 anos de idade; nossa primeira televisão com controle remoto veio quando eu já tinha uns 11 anos (e de um sorteio que minha mãe participou por ter sido uma das melhores líderes vendedores de tupperware da época); minha primeira bicicleta (nossa! porque essas coisas eram únicas para mim e meu irmão) também por volta dos 11 anos. Não tivemos videogame, viagem para Disney, grandes festas de aniversário, roupas da temporada ou muitos pares de sapatos (que geralmente eram comprados em números maiores para durarem mais).
Recebemos muitas reclamações, algumas palmadas, horas de castigo, muito exemplo e, principalmente, muito amor e afeto. Com isso, aprendemos que o que é dos outros é dos outros, que o que é nosso é nosso e que dividir o que é nosso pode ser tão prazeroso quanto necessário. Aprendemos que os mais velhos merecem respeito, que os menores precisam de cuidado e que a mentira, além de ferir, afasta as pessoas que amamos. Que expressões como “com licença”, “por favor” e “obrigado” não são favores, mas obrigação de pessoas educadas. Por causa deles, fiz meu primeiro vestibular aos 10 anos, entrei numa das melhores escolas públicas do Recife e iniciei o maior disparate que uma criança pobre pode fazer: aprender! Eram duas ousadias concomitantes: uma escola que ensinava e alunos que aprendiam. E eu o fiz com muita leveza, mas não sem cobranças, porque, por causa deles, eu nunca duvidei que pudesse fazê-lo. Para mim era claro que eu poderia, não só poderia como deveria.
Por causa dos meus pais, dos pais dos meus pais e, talvez, devido aos pais deles eu sou um número fora das estatísticas, uma contradição social... Sou fonoaudióloga, com mestrado em Ciências da Linguagem, atualmente cursando especialização em Linguagem e seus distúrbios. O pouco letramento e as muitas privações dos meus avós não foram suficientes para impedir que seus filhos se tornassem cidadãos de bem. Por sua vez, meus pais quiseram se tornar heróis através de seus filhos – contrariando as previsões sociais, revolucionando nossas vidas com a educação de boa qualidade, na medida do possível e extrapolando essas medidas, às vezes – e conseguiram, são grandes heróis. Somos (meu irmão e eu) o reflexo do esforço e da conduta dos nossos pais e de seus desejos que, por conseguinte, é resultado de experiências, crenças e oportunidades que eles tiveram em seus lares.
E o que a minha vida tem a ver com aquele menino de lá? Faz-me pensar o que seria se fosse. O que ele seria se lhe déssemos outras coisas, se tivéssemos oferecido outras coisas a seus pais e aos pais de seus pais? Penso o que ele seria se tivesse aprendido a ler e escrever corretamente? Se os seus pais fossem corretos e não tivessem que concorrer com as drogas e o dinheiro fácil e ilícito? Se esse desejo de consumo não fosse tão agressivo em nossas mentes e corações? Pensando nele (e em tantos outros como ele) e em mim, penso o que eu seria se não tivesse os pais e a escola que tive? Não desprezo os meus méritos pessoais, mas, seguramente, eles são consequência e não causa das pessoas e das oportunidades da minha vida.

Um comentário:

  1. Mensagem igual dupla. Pensar no assunto: dia e noite.

    Urgente. Criemos, urgentemente, “Fórum o Brasil que queremos, para nós, nossos filhos e o filhos de nossos filhos”.

    Urgente. Criemos, urgentemente, “Fórum o Brasil que queremos, para nós, nossos filhos e o filhos de nossos filhos”.

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